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Acordei com a avó Alice no pensamento
É curiosa a forma como por vezes elegemos as memórias das estórias contadas e deixamos arrumadas a um canto as memórias vividas.
No mesmo ano, aos mesmos 6 meses, morreu o avô paterno. Quase não me lembro do seu nome, José, porque as pessoas importantes eram tratadas pelos apelidos. Dele guardo um carimbo da firma, com o telefone número 2, uma página de jornal em sua homenagem e a sua secretária, que herdei. Guardo as estórias dos rebuçados que trazia sempre nos bolsos para oferecer aos pirralhos. Guardo o respeito pela pessoa, boa, que me ensinaram que era. Sem o ter conhecido, guardo a admiração que sempre lhe tive e as vontades de com ele partilhar conversas. Acho que talvez fossemos parecidos…gosto de acreditar que assim fosse.
Do outro avô, materno, não guardo quase nada a não ser uma fotografia em cartão duro e amarelado, tirada em 1918, quando terminou a 1ª grande guerra. Foi do corpo expedicionário em França, e a fotografia com o pé partido sempre me fez imaginá-lo como um herói. Não lhe guardo memórias, nem saudades, porque a saudade é a ausência da presença e ele nunca me esteve presente.
A avó Alice, morreu aos 92 anos. Foi a única presente, foi a única que não me deixou mimos, nem memórias floreadas. Saudades…sim, agora, depois de (muito) adulta…posso dizer que me deixou.
Sempre a conheci já surda, diz-se que ficou assim no parto do meu pai. Sempre a conheci com uma altivez que me deixava de nariz franzido. Sempre receei as suas vindas em férias repartidas pelos filhos entre Lisboa e o Algarve. Sempre me enervaram os gritos que dava até que lhe chegássemos perto quando nos chamava sem ouvir as justificações da demora. Sempre a achei muito vaidosa e com manias de superioridade. Sempre me influenciou o facto de ter sido contra o casamento dos meus pais. Não gostava da forma como, à mesa das refeições, descascava a fruta ao meu pai, num gesto acompanhado de frases maternais a que ele já não tinha direito, sem sequer se preocupar se os netos tinham comido o que estava no prato. Sempre joguei pela equipa contrária, só para a contrariar.
Gostava das suas visitas na Primavera porque me trazia amêndoas doces para os meus anos, que são perto da Páscoa.
Gostava da cor do seu cabelo muito arranjado num carrapito, metade branco e metade cinzento, como se a divisão tivesse sido traçada a régua e esquadro. Gostava das suas gargalhadas, poucas mas num tal despudor que era contagiante (julgo que iguaizinhas às minhas, confesso!).
Agora, que já sou (muito) adulta, arrependo-me de não ter feito um esforço por a conhecer melhor, arrependo-me de não lhe ter perguntado porque não me deu mimos e não me contou humildes estórias de encantar ou de chorar. Arrependo-me de não lhe ter entendido os humores de limão.
Curiosamente, sou nalguns pormenores a que não consigo fugir, igualzinha a ela. Nos traços do rosto, no porte altivo e na gargalhada despudorada…pronto, talvez por vezes, também nos humores de limão.
Tudo isto para lhes dizer que gostava de um dia, ter uma neta chamada Alice!
10 comentários:
Muito bonito o texto.
Derivo para os meus.Presente foi sempre a minha avó materna,de seu nome Virginia,a viver sozinha num casarão lá para as bandas do Douro.Espartana na vida,tinha de seu os canteiros das campainhas e um gato preto.Dela herdei seguramente ,e via materna,a independência e o sentido de humor.
Não conheci o meu avô paterno ,de seu nome Francisco,veterinário e chefe dos bombeiros.Dele criei uma imagem bondosa e guerreira...um gosto particular pelas pratas inglesas que guardo religiosamente aqui ao lado.Dele herdei seguramente este gosto pelo antigo que não me larga e me prende ,deliciosamente...
às vezes descubro blogs fantásticos;
outras vezes,
blogs fantásticos descobrem-me a mim.
obrigada.
Todos os dias tenho saudades da minha avó Luísa... e hoje ao ler o teu post ainda tive mais (como se isso fosse possível)!
rose
Seremos uma herança dos nossos avós, mesmo dos que não chegámos a conhecer?...
O meu conceito de avó anda tão longe do que gostaria que tivesse sido...
Marta
Foi um prazer, descobrir "a vida que há em ti".
Vai ser um prazer ler-te!
Pronúncia
Que bom deve ser sentir assim saudades de uma avó. Quem me dera poder senti-lo assim, como tu, com a avó Luísa.
:)
Ana
Acredito que sim.Há um ténue fio que nos vai abraçando ,trespassando os tempos em infinitos legados.E assim nos vamos eternizando.
Gosto muito da tua prosa intimista que me faz lembrar...
rose
Gosto da ideia..."assim nos vamos eternizando"...com os fios do novelo.
Gosto que gostes! Faz-te lembrar!?...
Gosto tanto da tua escrita solta, pode ser que um dia também ouça a gargalhada despudorada...quanto ao humores de limão,já li algumas breves amostras e chega-me. ihihh
beijinhos menina do Sul
PS: Achas que o teu filho vai nessa de chamar Alice quando tiver filhas?
Who
Gosto tanto quando me dizem que gostam de algumas "escrituras", que hei-de fazer, sou uma vaidosona incurável. Obrigada!
Quem sabe, um dia, ainda trocamos gargalhadas despudoradas por sorrisos bonitos!?...
Eu não acho que o filho vá nessa, mas gostava que fosse. Gosto de Alice!
beijinhos
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